domingo, 11 de maio de 2014

Natimorto

Gastei horas,
Folhas brancas e grafite,
Tentando desenhar algo
Que pudesse nos representar.

Mas eu, que desenho tão bem
Quanto lido com sentimentos,
Fiz apenas o que sempre faço.
Fiz aquilo que não sei fazer.

E outra vez,
Minha lixeira se encheu de rascunhos
E de histórias que não começaram.



No papel amassado,
Sufocados, tal como seus desejos,
Jazem os personagens,
Riscados em traços fortes e desajeitados,
Típicos de um amador na arte de criar,
Mas que tem a destruição
Como um dom nato.



Na ponta dos dedos,
Tenho o pó negro e reluzente
Dos contornos que tentei delinear.

As mãos completamente sujas
Pelo sombreado mal feito,
Borram os últimos cantos limpos
Do que se poderia aproveitar.



E outra vez,
Minha lixeira se encheu de rascunhos
E de histórias que não começaram.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Do Cotidiano - IV

   Intervalo entre aulas na faculdade.

   Eles eram apenas amigos.

   - Tu devia deixar a barba crescer.

   - Por quê? - Ele não levantou os olhos do caderno. Estava terminando umas anotações.

   - Porque barba é tão... Sexy... - Ela suspirou e deu uma risadinha quase maldosa.

   - Eu não tenho muita barba... - Ele não tinha mesmo, e ela sabia disso. Além disso, usava seu cabelo sempre bem curto, coisa que ela também abominava.

   - Sei lá... Barba deixa o homem com cara de malandro... No bom sentido, é claro.

   Ele não conseguia imaginar um malandro no bom sentido, mas não quis dividir seu pensamento. Ela continuou.

   - Ah, só de pensar em acordar e ver aquela carinha de sono, aquele cabelo desgrenhado e aquela barba por fazer... Nossa... - Agora ela falava de modo afetado, acreditando na própria fantasia.

   Ele ainda tinha os olhos no caderno. Falava em um tom quase desatento e despreocupado. - Homem com cara de malandro, hein? É... Depois se ferra e não sabe por quê... Ah, mulheres...

   - Epa! - Ela se antecipou. - Eu não disse que gosto de homens malandros. Eu disse que gosto de homens com cara de malandro - e deu ênfase ao último trecho.

   - Ah, claro... - Disse ele, calmamente. - Tu já viu alguma serpente com carinha de urso panda?

   Ele sabia o quanto a irritava com suas observações.

   O pior de tudo é que ele, quase sempre, estava certo, e isso a irritava ainda mais.

Do Cotidiano - III

   - Mas você namora à distância?

   - Aham.

   - Ah... Bom... Sei lá, é uma coisa minha, mas não coloco muita fé em relacionamentos assim, sabe? Parece que o sentimento não é o mesmo.

   - Entendo...  - Ele levou a mão ao queixo e tomou um ar pensativo, ficando em silêncio por alguns segundos enquanto a olhava. Com a calma de sempre, voltou a falar. - Mas me diga uma coisa... Você acredita em deus?

   Ela estranhou a pergunta, mas respondeu. - Sim...

   - Então eu presumo que você costuma encontrá-lo pessoalmente para rezar...

   Depois de encará-lo por alguns instantes, ainda surpresa, ela torceu os lábios de maneira desgostosa e se afastou dele.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Do Cotidiano - II

     A lixeira não era da sua casa, e o cachorro não era seu. O cachorro, aliás, era um cachorro de rua, um vira-latas. Ainda assim, ele se viu na obrigação de fazer alguma coisa. E fez.

     - Saí daí, cachorro! - Disse ele, e em seguida fez aquele barulho estranho que as pessoas sempre fazem quando querem espantar um cachorro. Aquele, que parece um beijo dado no ar, mas que não chega a ser.

     O cachorro, coitado, ainda com os pedaços de sacola plástica na boca, não logrou êxito em seu furto famélico. Correu e deixou para trás o aroma atraente de alguma possível refeição escondida naqueles sacos de lixo.

     O homem, por sua vez, sentia-se grato consigo mesmo. Não haveria lixo nas ruas. Não naquela calçada, pelo menos.

     E quando se preparava para seguir seu caminho para o trabalho, voltou os olhos para a mesma lixeira de onde expulsara o cachorro há instantes.

     Discretamente, aproximou-se. Olhou para ambos os lados, certificando-se de que não havia ninguém observando e, com um um movimento rápido - ao menos para ele, pois levou alguns segundos para executá-lo -, rasgou uma sacola e desenroscou uma tampinha plástica de uma garrafa. Uma daquelas que somam pontos para uma promoção qualquer.

     Olhou para os lados novamente e guardou a tampinha no bolso da jaqueta.

     O cachorro? Não, não. Ele nem lembrava mais dele. Estava ansioso para chegar em casa e digitar o código que lhe dava direito à participação naquela promoção, a da tampinha premiada.

Paradoxos

     Segundo a Física, o tempo não passa e, de certa forma, não existe. É apenas, ainda que não tão apenas, uma quarta dimensão.

     Aos leigos, no qual me incluo, cabe dizer que, dentro do tempo, as coisas é que passam e mudam. O tempo, por sua vez, permanece inalterado desde o seu princípio. Considerando, é claro, que houve um princípio para algo que, ironicamente, nunca nasceu... Paradoxos, paradoxos...

     E por falar em paradoxo, talvez seja essa a resposta - ou apenas a palavra - que define um sentimento estranho que, por vezes, pegando carona na saudade, vem sentar ao meu lado.

     Não sei dizer se era o vento, a bebida ou as companhias, mas o fato é que, mesmo sem nunca ter passado, - pela bendita Física - aquele tempo nunca voltou e nunca voltará.

     Nossos risos ficaram impregnados naquelas mesas e cadeiras.

     Nossa juventude, ingenuamente ébria, ficou marcada naquelas noites.

     E de tudo o que dissemos e pensamos, ficaram as lembranças do que queríamos e não chegamos a conquistar: a eternidade.

     Paradoxos, paradoxos... O tempo não passa, mas nada é eterno...

     Paradoxos.


Do Cotidiano - I

Espalhados pela cidade, colados em muros e postes, os cartazes, em uníssono, questionavam:

"Você já se perguntou por que gosta tanto de alguém?

Ou preferiu apenas gostar, sem se preocupar em saber o porquê?"