domingo, 27 de setembro de 2015

...

  Dizia que estar com ela era estar em paz. Era experimentar um silêncio que as vozes em sua cabeça há tempos já não lhe permitiam.


  Ficar sozinho tornou-se insuportável, mas não pela solidão em si, pois, constantemente esmagado por seus pensamentos, jamais conseguia estar só.

  Ela era a calma. O instante quieto que precede o sorriso. O suspiro de alívio que precede o abraço. O fechar de olhos que precede o beijo.

  Ela era a neutralidade entre os polos. Era a cabana frágil e indestrutível que acolhe quem foge da tempestade. Era quem ele seria, se ele não fosse quem acabou sendo.

  Ela era, para ele, a cura de si mesmo.

Todos e Todas

Irão rir ou chorar comigo
Pelos amores não amados
Quando tudo vier à tona?

O que parecia engraçado,
Jamais foi piada alguma.

O que pareceu não fazer sentido,
Foi sempre o mais desejado.

Irão rir ou chorar comigo
Por tudo aquilo não vivido
Quando o fim vier à tona?

Talvez, enfim, você perceba
Que se não andei ao seu lado,
Foi para não te abandonar
Quando não houvesse mais caminho.

Talvez, enfim, você perceba
Que meu descaso, quem diria,
Foi sempre o mais puro e sincero
Amor de quem não pôde ser amado.

Lamúrias

Que vivam de amor e firulas
Os que disso puderem viver.

Mas se verde-escura for minha chama,
De raiva amarga e ressentida,
Que assim seja
E muito será bem vinda.

Há quem pregue a falsa modéstia
Ao dizer que a beleza é supérflua,
Tendo sido sempre belo.

Há quem despeje a falsa humildade
Ao dizer que dinheiro e felicidade
Não são faces da mesma moeda,
Sem jamais ter saído do próprio castelo.

Aos que cantam lamúrias inexistentes
E gemem dores que nunca sentiram,
Deixo meu riso de escárnio.

Pois enquanto sorriem mentiras
A todos e a si mesmos,
Ao menos meu rancor é sincero.

...

 Parecia estar sempre com a mesma roupa. Tinha poucas, na verdade, o que servia apenas para reforçar essa impressão. Quando não estava na praça da cidade, dividindo com os pombos o pouco pão que tinha, estava em algum bar, bebendo os poucos trocados que conseguia ganhar. E pelo pouco que ganhava, diga-se de passagem, bebia muito.

 Não era um mendigo, mas também não chegava a ser nada que dissesse o contrário. De fato, ninguém sabia o que ele era.

 Não era indigente, pois morava em uma casinha de madeira caindo aos pedaços, no final da rua 14. Ninguém nunca o via entrar ou sair dela, mas sabiam que pertencia a ele, pois, às vezes, o viam dormindo em frente a ela, caído ao pé da porta, com um ou dois cachorros por perto e algumas garrafas vazias.

 Uns riam, outros sentiam pena. Uns tinham medo, outros o cumprimentavam. E ainda que dividisse opiniões, em uma coisa todos concordavam: era inofensivo.


 Ganhava a vida limpando pátios, recolhendo lixo, carregando compras do supermercado. Ninguém sabia quantos anos tinha, mas era comum vê-lo jogando bola com os garotos e, noutras vezes, lendo algum jornal velho, sentado em algum banco da alameda, de pernas cruzadas e fumando seu cachimbo apagado, como um nobre e respeitável senhor.

 Uns diziam que era assim desde sempre. Outros, que havia ficado louco depois de perder a família em um incêndio. (Dizem, inclusive, que é justamente por isso que não acende o cachimbo. Tinha tanto medo de fogo quanto um gato tem de água, embora ninguém realmente soubesse o verdadeiro motivo).

 Certa vez o viram tirando o próprio casaco e o dando para um mendigo (um de verdade, pois ele não era). Foi o suficiente para despertar aqueles comentários cheios de comiseração.

 - Pobre coitado... Ajuda todo mundo e só faz mal a ele mesmo...

 E nessas de ajudar os outros, também tinha dessas de querer ser ombro amigo. Às vezes se parava a escutar os lamentos de quem quisesse lamentar. Crianças, velhos, passarinhos, cachorros. Até as lixeiras desabafavam com ele de vez em quando. E claro, isso era o suficiente para despertar mais daqueles comentários cheios de comiseração.

 - Pobre coitado... Dá aos outros o que não tem nem pra si...

 E nessas de dar aos outros o que não tinha, também tinha daquelas de dar mais do que roupas, moedas e conselhos.

 Costumava distribuir os sorrisos que já não sorria, os abraços que não recebia e os apertos de mão que não lhe eram negados.

 Dava aos outros, sem pedir nada em troca, a vida que não vivia.

Oitenta e Seis

Escrevia o velho, finalizando seu testamento:
"... e a vida passou por mim sem me deixar explicar nada."

...

 - Você já passou por isso?
 - Pelo quê?
 - Por esses momentos de reflexão tão fortes que chegam a te deixar sem fôlego...
 - Talvez... Como assim? Fale mais...
 - Eu não sei... É o absurdo da vida, ou melhor, o absurdo que é a vida! Olha só, agora nós temos vinte e poucos anos, mas ontem nós tínhamos dez, e quando digo ontem, a coisa vai além da poesia, da mera figura de linguagem, porque se você fechar os olhos agora, vai se lembrar de quando estava na quarta ou quinta série como se fosse, literalmente, ontem... Vai lembrar até do cheiro da casca de lápis, das carteiras recém limpas pelas funcionárias... Enfim... Temos vinte e nossos pais têm quase cinquenta, mas amanhã nós teremos quase cinquenta e eles, talvez, nem existam mais... Não dá uma vontade louca de sair correndo, entrar em casa com oito anos e voltar à época em que você não sabia que nada disso ia acontecer? Quando se é criança, aprendemos que, um dia, vamos morrer, mas é um aprendizado meio falso, pois só repetimos essa certeza sem saber, ou melhor, sem realmente entender o que ela quer dizer e o quão certeira ela se tornará... Sei lá... Eu penso demais! Quem serão meus filhos? E a minha esposa? Eu vou ter câncer? Vou morrer nesse final de semana? Meu deus... Meu deus... Qual é o sentido disso tudo? Às vezes a impressão que se tem é a de que o segredo da vida é, justamente, não saber o que ela é... Meu deus... Eu preciso viver... Quer namorar comigo?

 Ela riu. Estava com um pouco de lágrimas nos olhos, mas riu. - Você fez todo esse discurso só pra pedir isso?
 Ele não respondeu. Seus olhos também estavam marejados, mas ele não sorria.
 Abraçaram-se, beijaram-se e selaram com o silêncio uma questão que, mesmo sendo comum a todos, possuía uma resposta única, totalmente individual para cada um que se atrevesse a perguntá-la.

Pecados

A luz amarelada dos postes,
Sentinelas da madrugada,
Observando seus movimentos
Escorregadios, ladinos, quase criminosos,
Faz questão de mostrar
E esfregar na sua cara
Que você não é nada do santo
Que sempre pensou e disse ser.

A noite não julga, apenas observa,
Mas para quem está sub judice,
O menor dos desvios é o suficiente
Para incriminar o mais inocente dos culpados.

...

   Enquanto folheava o velho álbum de fotografias, seus lábios sorriam e seus olhos desenhavam uma mistura quase incompreensível de tristeza e saudade. Foi acordado de seus pensamentos e lembranças pela voz do amigo.

   - É uma pena que não seja para sempre, né?

   - O quê? A infância?

   - A vida...

Ofensas


As ofensas choviam,
Mas as únicas coisas que o atingiam
Eram as poças de lama
Na sola de seus sapatos.

Passava por cima de tudo,
Como se sob seu guarda-chuva
Coubesse um mundo inteiro
Onde ninguém mais cabia.